Herculano Alvarenga é um faz-tudo. Já foi médico ortopedista e observador de pássaros. Hoje é paleontólogo, taxidermista, curador e diretor do museu de história natural que criou
Herculano Alvarenga é o homem certo no lugar certo. Ele é um paleontólogo, o cientista que estuda formas de vida extintas. A região em que vive - Vale do Paraíba - é um manancial quase inesgotável de fósseis.
Há 23 milhões de anos, o Vale do Paraíba era o fundo de um lago que se estendia por 150 quilômetros, de Jacareí a Cruzeiro, ambas em São Paulo. O Lago Tremembé era estreito, pouco profundo e espremido entre as serras da Bocaina e da Mantiqueira.
O lago era cercado por florestas luxuriantes, lar de pássaros, mamíferos e répteis hoje extintos. Alguns daqueles animais se aventuravam pelo lago para pescar. Quando isso acontecia, suas patas podiam se prender no lodo, imobilizando-os. Os animais acabavam morrendo afogados. Seus ossos, preservados na lama do fundo, viravam fósseis.
O médico Herculano Alvarenga, de 64 anos, descobriu que vivia sobre um tesouro científico quando, em 1977, decidiu por curiosidade investigar as rochas de uma mina de argila em Tremembé, cidade ao lado de sua Taubaté natal. A argila da Mina Santa Fé formava o lodo do antigo lago. Do local haviam saído fósseis de pequenos peixes e insetos, mas nada comparado ao magnífico exemplar que Alvarenga teve a sorte de encontrar. “Aqueles ossos elegantes e compridos pertenciam claramente a uma ave. Mas uma ave com dimensões inacreditáveis.”
Era o esqueleto de um temível predador, uma ave do terror. Quando vivo, o animal media 2,20 metros e pesava uns 200 quilos. Era maior que um avestruz. O bicho era armado com um bico do tamanho da cabeça de um cavalo. Parentes distantes das seriemas, as aves do terror evoluíram após a extinção dos dinossauros e tomaram seu lugar como os predadores supremos das Américas, que infestaram por 60 milhões de anos. Conhecem-se várias espécies. Nenhuma é tão completa como o Paraphysornis brasiliensis, nome que Alvarenga escolheu para batizar seu espécime. “Na Argentina e nos Estados Unidos existiam até aves maiores, mas o que se achou dos esqueletos é uma porção ínfima quando comparada aos 75% do Paraphysornis”, diz Alvarenga. O achado do esqueleto foi um acontecimento único. Alvarenga vasculha a argila da mina há 35 anos. Nunca mais achou outra ave do terror. O Paraphysornis é a estrela do Museu de História Natural de Taubaté. O museu deve sua existência àquele bicho precioso – e também à paixão de Alvarenga pela natureza.
Herculano Marcos Ferraz de Alvarenga nasceu em Taubaté em 1947. Ainda adolescente, começou a observar os pássaros da região. Aquilo acabou virando um hobby. “Adoro tudo quanto é bicho desde criança.” Enquanto os garotos de sua idade juntavam selos e tampas de garrafa, Alvarenga começou uma coleção de aves. Para colecioná-las, antes era preciso aprender a arte de empalhar. Aos 15 anos, Alvarenga quis passar férias em São Paulo para aprender o ofício da taxidermia. Os exemplares que ele empalhava eram exibidos nas exposições de ciências no colegial. Seu interesse por anatomia e biologia o levou a estudar medicina. Ele se especializou em ortopedia. Em 1975, após os anos de residência em São Paulo, Alvarenga voltou a Taubaté e prestou concurso para professor na Faculdade de Medicina da cidade. Em 1977, a faculdade entrou em greve. “A paralisação foi longa. De repente, fiquei com muito tempo livre. Resolvi empregá-lo indo procurar fósseis na mina de argila.” A coleta revelaria o tesouro paleontológico que mudaria sua vida.
Alvarenga levou dois anos para extrair da rocha e limpar o esqueleto da ave do terror. “A antiga argila tinha virado uma rocha muito dura. Os ossos eram muito delicados. Limpá-los deu um trabalhão”, diz Alvarenga. Os passos seguintes foram apresentar a nova espécie à comunidade científica e também produzir moldes para com eles construir réplicas do esqueleto.
De maneira geral, os museus de história natural não são instituições ricas, amparadas por polpudos doadores dispostos a bancar a aquisição e a ampliação de seu acervo. Quando alguém encontra um exemplar único como o Paraphysornis, ele vira uma moeda de troca. Alvarenga começou a receber propostas de instituições importantes. Em troca de uma cópia do esqueleto da ave do terror brasileira, o Museu de História Natural de Londres enviou uma réplica do fóssil do Archaeopteryx, a mais antiga das aves, além de fósseis de moas, as aves gigantes extintas da Nova Zelândia, e do pássaro dodô das Ilhas Maurício, extinto em 1662. Do Museu de Los Angeles veio um crânio de tiranossauro rex. De Tóquio veio a ave-elefante de Madagascar, a maior que existiu, com 3 metros e 400 quilos. Do Museu Nacional do Rio de Janeiro veio o estauricossauro, o mais antigo dinossauro brasileiro. Seattle mandou esqueletos de gorila e dragão-de-komodo.
Apesar do sucesso, Alvarenga interrompeu a troca de materiais com outros museus faz sete anos. “Desisti de trocar réplicas quando a alfândega começou criar problemas. Alegavam que eu não trabalhava numa universidade, que não era isso, que não era aquilo. E que era importação indevida. Aí, desisti. Tinha de pagar R$ 3.500 de imposto para liberar um quivi, uma ave da Nova Zelândia. Recusei. Não sei o que fizeram com ele. Devem ter leiloado.”
Todas as réplicas reunidas por Alvarenga foram parar em sua casa. “O acervo foi aumentando com as peças que ia comprando, achando, juntando, trocando e ganhando.” Para bancar essa brincadeira, Alvarenga dava aulas na faculdade e atendia pacientes no consultório e no ambulatório. Todo o tempo livre era dedicado à pesquisa de novas espécies fósseis (depois do Paraphysornis, Alvarenga descobriu várias) e ao cuidado das coleções. Só a de aves ocupava uma dezena de armários. “Havia ossos, esqueletos, aves empalhadas, peles e ovos para todo o lado. À medida que minhas três filhas iam saindo de casa, seus quartos viravam depósitos. Minha mulher é muito legal. Ela nunca reclamou de nada.”
(Foto: Renata Cunha )
Ao longo dos anos, sua reputação científica foi aumentando. Alvarenga passou a ser procurado por paleontólogos de todo o mundo para ajudar na descrição de aves extintas. Muitos deles começaram a visitar Taubaté para estudar os ossos da ave do terror. Ao fazê-lo, ensinavam a Alvarenga o ofício da paleontologia. A preparação dos fósseis é um trabalho delicado e minucioso. Usam-se brocas especiais e agulhas para ir retirando, de grão em grão, a rocha incrustada que aprisiona o fóssil. Todo cuidado é pouco para não destruí-lo.
Pouco a pouco, Alvarenga foi deixando de ser um estudioso amador para se tornar um cientista profissional. Em 1998, um ex-prefeito de Taubaté teve a ideia de criar um museu de história natural na cidade. O projeto avançou e, em 2000, a prefeitura doou o terreno e financiou a construção do edifício. O museu foi inaugurado em 2004. Lá estão hoje 14 mil peças, 4 mil em exposição. “A maior parte do acervo continua em casa.” O museu recebe a visita de 2 mil estudantes por mês. “Ainda é pouco. Esse museu precisa crescer.”
Alvarenga abandonou a medicina em 2010 para se dedicar ao museu em tempo integral. “Trabalho de manhã, de tarde e de noite. Trabalho em feriado e fim s de semana. Faço tudo aqui dentro. Mas gasto tempo demais cuidando da administração, mexendo com números. Meu sonho é ser apenas o paleon¬tólogo deste museu”, diz. No prédio não há uma sala do diretor. O museu inteiro é a sala de trabalho de Alvarenga. Não há uma rotina de trabalho. Ele pode escolher passar a manhã cuidando da administração, das compras e das contas. De tarde, pode se dedicar à curadoria de fósseis, à descrição de espécies ou à taxidermia.
No momento, Alvarenga está montando um urso-negro e um jacaré. As carcaças originais foram cobertas com gesso para a obtenção de moldes. Eles serviram para a criação de manequins, esculpidos em espuma de poliuretano. Feito o manequim, a pele e o couro que foram curtidos são costurados, os olhos são pintados, os dentes e a língua são modelados. Além de médico e cientista, Alvarenga é também artista.
POR DENTRO DO MUSEU 1. O alossauro, um dinossauro americano de 150 milhões de anos 2. Um pelicano empalhado pronto para a exposição 3. O crânio do purussauro, o maior dos jacarés. Tinha 15 metros. Viveu na Amazônia há 7 milhões de anos (Foto: Guilherme Zauith/ÉPOCA)
Os cadáveres do urso e do jacaré, assim como da girafa de 4 metros que fica no hall de entrada do museu, vieram do Zoológico de São Paulo, onde Alvarenga é conselheiro. Quando algum animal morre, telefonam para ele. Um exemplo é o caso do rinoceronte. Há alguns anos, era fim de tarde quando ligaram dizendo que o bicho tinha morrido. Perguntaram se Alvarenga queria ficar com ele. “Quero! Tô indo aí pegar!” Alvarenga conseguiu um caminhão e pegou a Via Dutra em direção a São Paulo, a 130 quilômetros dali. Era noite quando o rinoceronte de 3,5 toneladas foi içado para dentro da caçamba. E madrugada quando o caminhão estacionou no pátio do museu. Na manhã seguinte, Alvarenga comprou facas de açougueiro e, com a ajuda dos estagiários do museu, começou a desmembrar o bicho. Não havia empilhadeira. O único jeito de tirar o animal da caçamba era aos pedaços. A carcaça foi posta em sacos de lixo, fechados com grampeador. Os sacos ficaram largados ao relento por cinco meses. “Quando abrimos, não havia mais cheiro. As larvas das moscas limparam o esqueleto inteiro. Aí ficou fácil prepará-lo para a exposição.”
O Brasil é muito pobre em museus de história natural, instituições que nos Estados Unidos, na Europa e no Japão são recordistas de bilheteria. Aqui, os museus são poucos, seus acervos são minguados, e as condições de exposição costumam deixar a desejar. O museu de Taubaté é uma exceção. É talvez o melhor de todos. Ele é a iniciativa de um homem só. Sem o amparo de uma grande instituição, o museu de Taubaté pode um dia acabar. A manutenção custa R$ 10 mil por mês. A prefeitura dá R$ 7 mil e o resto é pago pela bilheteria. “Não ponho dinheiro aqui. Já doei minhas coleções. Este museu precisa se viabilizar comercialmente. Caso contrário, quando eu morrer ele fecha.” A solução é a expansão. “Museu é como empresa. Não existe empresa pequena. Este museu só tem dois caminhos: crescer ou morrer.” Alvarenga tem planos para triplicar a área do museu. “Costumo dizer que a experiência até aqui foi muito boa. Chegou a hora de fazer um museu de verdade.” Só falta o dinheiro. Alvarenga não desiste. Além de médico, cientista e artista, ele é um empreendedor nato.
Fonte: Revista Época
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